Algumas vezes olhamos para as pessoas tentando adivinhar suas vidas, seus
pensamentos, seus motivos, suas atitudes, algum comportamento ou algo que nos
chama atenção.
Outras, nem ao menos nos interessamos em olhar, são os invisíveis,
pessoas aparentemente sem uma história que desperte curiosidade.
Se você em algum momento teve essa moeda na mão, vamos contar os porquês
de um personagem muito especial, e mais de um outro mais especial ainda que fez
a diferença em sua vida.
Um personagem que só será percebido por aqueles que tem uma
sensibilidade para enxergar um movimento simples, e ouvir o silêncio.
Madrugada de sábado. Um grupo de adolescentes vindo de uma festa,
resolveu completar a diversão espancando um morador de rua que dormia encostado
em seu canto feito quarto que escolhera para aquela noite.
Os jovens batiam no homem até que ele acordou assustado.
Xingavam e chamavam-lhe de vagabundo, desocupado, que estava "enfeiando" a
rua.
Este, não teve alternativa a não ser encostar-se à parede e esperar o
pior. Não tinha força e nem coragem para enfrentar o seu fim que parecia ter
chegado.
Rendeu-se passivo.
Foi surpreendido pelo rosnar de um cão que pulou sobre os agressores
enfrentado as feras, sem medo, sem arma, apenas com sua coragem e senso de
justiça.
Acompanhou os fugitivos covardes até os perder de vista, deixando o
defendido sem palavras e sem ação.
De onde viera aquele cão tão valente, com tanta força? Como gostaria de
lhe dizer obrigado − Pensou o homem.
Machucado, sentou-se no em seu chão com a lembrança boa de ter sido
defendido, protegido por “alguém” – sim, porque o seu defensor era alguém a partir
daquele momento − que finalmente se importara com ele.
Ainda nesses pensamentos foi surpreendido com a chegada de seu herói. O
abraçou e fez festa. Chorou de alegria, coisa que havia muitos anos que não sabia o que era. Conversou com ele, fez
perguntas, todas com resposta que só ele entendeu.
Perguntou seu nome, sua raça, se tinha família... e lhe disse que se nao
tivesse estava convidado a ficar.
O cão deitou-se ao seu lado como que aceitando o convite. O homem
apresentou-se:
− Me chamo
Heitor. Também não tenho família, um dia tive, mas perdi. Só me restou o agora,
e as calçadas generosas das ruas e este céu que me cobre seja de que jeito estiver.
Um dia já me senti importante– continue Heitor – Hoje sou uma pessoa apenas. Vamos escolher um
nome para você. Precisamos ter intimidade, nos conhecermos melhor, ter uma
identidade. Sei que muitos vão lhe chamar de cachorro sem dono, vira-latas,
coisa que você não é. Nota-se pelo porte e pela coragem dos fidalgos. Chamarei você
de Conde. Serei seu amigo como você foi meu amigo.
Nascia uma amizade, um companheirismo.
Mudavam de bairro quando estavam cansados do mesmo lugar, queriam
aventura. A vida agora fazia sentindo. Heitor tinha com quem conversar.
Acamparam numa praia e Heitor resolveu abrir o coração e contar sua
história ao Conde. Eram amigos, e ele precisava saber dos motivos que o levaram
até uma casa sem teto.
Se emocionou no princípio. Já nem lembrava direito há quantos anos sua
vida mudara. Tinha as lembranças escondidas, algumas até apagadas de tanto
evitá-las.
Começou contando que já teve trabalho, tinha junto com sua mulher, uma
pequena floricultura, apenas com um funcionário. Adorava flores e aquele
trabalho era compensador pela beleza e pela alegria que dava às pessoas.
Contou que era loucamente apaixonado pela esposa e todos os dias a
presenteava com as flores mais bonitas quanto chegavam. Eram felizes e tinham
um filho de 10 anos. Uma família completa.
Depois de alinhar as flores e presentear à sua paixão, orientava o
funcionário e levava o filho à escola. Tarefa que fazia com amor.
Um dia depois de deixar seu filho na escola, começou a sentir-se mal.
Uma dor no peito, uma agonia, falta de ar e um suor que lhe cobria o corpo.
Encostou o carro, parou um taxi e pensou em ir ao hospital. Se sentia tão mal
que tinha certeza da morte.
Decidiu ir para casa, morrer ao lado de sua mulher, talvez tivesse tempo
de lhe dizer o quanto a amava e que cuidasse bem do filho.
Chegando em casa, entrou com dificuldade. A mulher deveria estar dormindo
ainda. Era cedo e Heitor a enchia de manhas a deixando dormir até mais tarde.
Foi até o quarto. Queria se jogar na cama e falar com ela pela última vez.
O que viu doeu mais que o mal-estar que sentia. Ela estava em sua cama
com outra pessoa. Ele não conseguiu ver mais nada. Só se lembra que saiu
gritando de desespero e desmaiou.
Acordou não sabe quanto tempo depois em um hospital. Estava só. Alguém
entrou, provavelmente uma enfermeira e lhe perguntou como se sentia.
Não respondeu. Virou o rosto e parecia que a cena que presenciou havia
sido um pesadelo. Fechou os olhos. Foi avisado de que um médico viria vê-lo
logo.
Levantou-se, se vestiu e saiu sem alarde.
Conde parecia entender a narrativa de Heitor, mas dava sinais de fome.
Heitor despertou para sua responsabilidade de alimentar o amigo, coisa que não
havia feito com seu filho. Chorou, se doeu, remoeu a dor de seu egoísmo, o
abandono de seu querido filho que agora já era um rapaz.
Prometeu a Conde que iria tentar saber do filho e lhe mandar uma carta
lhe pedindo perdão pela covardia. Chegar perto não teria coragem. Seria chutado
certamente.
Secou as lágrimas e foi providenciar alimento para seu amigo protetor.
Conde andava devagar. Já estava velho lhe doía as juntas. Muitas vezes
Heitor precisava carregá-lo.
Chegaram em outra cidade. Conde, em seu silêncio, reclamava de dores.
Heitor se arrependeu de ter cultivado uma vida miserável que agora não lhe dava
a chance de cuidar de seu amigo.
Em muitos anos, rezou. Não pediu por ele, pedia por Conde. Fez um acordo
com Deus: trocava sua vida mesmo sem valer muito, mas era a única coisa que
tinha, pela vida de Conde. Ou por um milagre que lhe tirasse as dores.
Procurou uma clínica veterinária e encontrou não muito longe. Se encheu
de esperança. Iria lá, explicaria a situação de seu amigo e a sua.
Limparia o chão, qualquer coisa em troca de um remédio para Conde.
O veterinário o ouviu e falou com Conde, parecia que ele também entendia
a linguagem dos cães. Mesmo olhando desconfiado para Heitor, disse que lhe daria
o medicamento e que isso o faria sentir-se bem, mas que depois ele saísse.
O Veterinário chamou seu assistente e pediu que lhe trouxesse o remédio.
O moço veio com o remédio. Heitor ia saindo e o moço pediu que esperasse.
− Espere, pai!
Heitor quase morreu de susto. Não o reconheceria nem em mil anos. Um
rapaz feito, bonito, diferente do trapo que Heitor era agora.
Heitor, baixou a cabeça. Não tinha saída. Precisava encarar sua vergonha
diante de quem pagou pelo que não devia.
O filho foi para abraçá-lo, Heitor tentou escapar – Não faça
isso – Pediu
Heitor.
O filho não o escutou.
− Não, pai,
você não vai fugir pela segunda vez. Nós dois vamos cuidar de seu amigo, agora
meu amigo também.
A aparência
suja e relaxada não impediu o abraço, fechando o círculo de dor e abrindo as
portas de uma nova vida.
Heitor
abandonou tudo.
Mas a vida o
fez reencontrar o que mais importa.
E você, o que
acha disto tudo?