sexta-feira, 17 de junho de 2022

Os olhos de Irene.

 


“Todos nós temos nossa máquina do tempo. Algumas vezes ela nos leva para trás, são chamadas de memórias. Outras vezes nos leva para frente, são chamados sonhos.”

Entre o tempo, a memória e os sonhos, uma lembrança bonita, que nada conseguia apagar.
 
Crescia assim Bento, um rapaz sonhador que não tirava da lembrança sua amiga de infância, Irene.
 
Vizinhos, frequentavam a mesma escolinha, as mesmas festinhas do bairro e tinham os mesmo amiguinhos.
 
Os pais das duas crianças eram amigos, e estar juntos era a normalidade.
 
Irene tinha os olhos bonitos, amendoados e de uma cor não definida. Bento, brincalhão em seus 5 anos, a chamava de olhos de água e Irene, malcriada, o chamava de olhos de barata, por causa do castanho de seus olhos.
 
Depois das “ofensas”, Irene ficava emburrada, mas Bento sabia como fazê-la rir em minutos.
 
Viveram esse encanto até os seis anos, quando as famílias tiveram que seguir suas vidas em caminhos diferentes.
 
Continuaram o contato por pouco tempo ainda, mas tendo cada um seus afazeres, o laço se desfez rapidamente.
 
Ninguém mais ouviu falar do outro, mas sempre que a mãe de Bento conversava com alguém sobre os antigos amigos e mostrava as fotos, Bento olhava com nostalgia.
 
— Lembra da Irene, Bento? – Sim – Sempre a mesma e única resposta.
 
— Lembra nada! – dizia a mãe – por onde será que anda aquele povo, hein, Bento?
 
— Sei não, mãe. Devem estar por aí. Nem lembram da gente mais.
 
E assim era sempre. O assunto parecia incomodar Bento, sua mãe não percebia.
 
As crianças deixam de ser criança muito rápido. E nós nem notamos e continuamos a tratá-las como se vivêssemos na terra do nunca.
 
Bento agora era rapaz, alegre, bonito e cheio de amigos. Mas de seu coração falava com poucos.
 
Lino, Cris e Vitor formavam esses poucos. Cada um com sua história e suas aventuras. Contavam e riam.
 
Bento também partilhava as suas histórias de forma muito bem humorada e com delicadeza quando falava de irene.
 
Perguntavam se ela era bonita e como deveria estar agora, Bento confessava que lembrava das brincadeiras, mas que o rosto de irene, e sua imagem, estavam se desfazendo de sua memória.
 
Isso o inquietava, porque era essa lembrança que lhe fazia um bem enorme.
 
— Mas você lembra se ela era bonita? – Perguntavam.
 
— Sim, lembro que diziam que erámos duas crianças bonitas
 
Os amigos explodiam em gargalhadas.

— Então esquece, amigo. Se vocês eram lindos quando crianças, por você, já dá para ver o que o tempo fez com ela!
 
— Se for assim está linda, até porque eu fiquei mais bonito! – Brincava Bento.
  
— Mas tem uma coisa que não esqueço: seus olhos. Eram olhos de uma cor que ninguém sabia dizer - comentava - eu a chamava de olhos de água e quase apanhava. - Concluía  ele ao mesmo tempo que ria, com ar de saudade.
 
Bento ocupava seu tempo em estudar e trabalhar. Pouco tempo lhe sobrava para namorar. Se divertia, mas a maior parte do tempo era dedicada ao trabalho.
 
Tinha uma paixão que era sua moto. A paixão correspondida era cheia de loucuras, desde andar em uma roda só até competições em estradas.
 
Foi no meio de uma loucura dessas que Bento sofreu um acidente.
 
Precisou ser operado e na sala de cirurgia entre dores e a vontade de viver, pedia para que não o deixassem morrer.
 
— Não se preocupe. Não vamos deixar − disse a enfermeira tentando acalmá-lo.
 
— Bento, num pedido de socorro, segurou sua mão com força e ela chegou mais perto e repetiu a garantia.
 
Um susto para Bento! Aqueles olhos cor de água... eram iguais aos olhos de Irene.
 
Ia dizer isso quando o anestésico fez efeito e ele dormiu.
 
Acordou vivo, como queria, e cheio de dores, como temia. Começou a checagem de ideias e pensamentos. Lembrou dos olhos que o fez recordar os olhos de Irene.
 
— Entortaram minha cabeça, mãe.

— Ai, minha Nossa Senhora da Luz, conserte meu filho...
 
Não consertou, como pediu a mãe. Ao contrário, cada hora tinha mais certeza que aqueles lindos olhos eram os olhos de Irene.
 
Tentou de todas as formas descobrir quem estava na emergência naquela noite, mas muito debilitado não conseguia fazer uma investigação competente.
 
Sua mãe não cooperava, mas ele tinha uma alternativa. Sim, quem tem padrinho não morre pagão. E ele tinha três padrinhos.
 
Pensou em chamar os amigos, mas não foi preciso.
 
A enfermeira que ele pensou fosse Irene, entrou em seu quarto e perguntou: − você é Bento que morava em Santa Cruz?
 
— Sim. Sou eu. E você, é Irene, a menina de olhos de água?
 
Os dois riram muito e confirmaram. Irene, a enfermeira, era a mesma Irene dos tempos de criança.
 
— Vi seu nome no prontuário e me lembrei dos amigos de meus pais que tinham o mesmo sobrenome. Vi também essa marca em sua sombrancelha e lembrei que nosso vizinho tinha essa marca.
 
— Lembrou?! Você lembrou de mim?
 
— Lembrei que tinha um amiguinho que brincávamos sempre.
 
Conversaram muito e um resumiu para o outro esses trinta e cinco anos de separação.
 
Irene estava divorciada e tinha três crianças e Bento, já sabemos de sua vida desde o começo dessa história.
 
Ela o visitava nos dias em que estava trabalhando e Bento passou a sonhar acordado e sem acreditar no que estava acontecendo.
 
Seria milagre? − se perguntava − Mas de quem? Queria beijar os pés desse Santo!
 
Bento se recuperou e saiu do hospital, trocando contato com Irene.
 
— Vou lá te visitar qualquer dia, assim que ficar ótimo – disse ele.
 
— Vai nada! Só “tá” falando. Deve continuar o mesmo pestinha que minha memória alcança.
 
Bento não esperou ficar bem, muito menos ótimo. Se vestiu com o coração aos pulos e avisou a Irene que estava ótimo e que estava indo visitá-la.
 
— Mas já está “ótimo” tão depressa?
 
— Na verdade não. Estou muito mal e preciso ver minha enfermeira.
 
— Sei... sua... pode vir, seu bobo. A enfermeira não é sua não, mas vai lhe ajudar.
 
Ia saindo quando quase foi impedido por sua mãe.
 
— Bento, meu filho, aonde você vai todo remendado desse jeito?
 
— Trocar os curativos, mãe, as feridas estão doendo.
 
— Ah, meu filho, mas não vai só não. Eu vou com você.
 
— Nem pensar, mãe!
 
E saiu quase correndo deixando a mãe falando só.
 
Parado em frente à casa de Irene, não sabia o que iria dizer. O rapaz alegre e conversador ficou tímido de repente.
 
Enfim, estava ali, e queria conversar com sua amiga. Afinal, eram trinta e cinco anos de separação, haveriam de ter muitas histórias para contar.
 
Conheceu os filhos de Irene e os amou. Falou de sua frustração em não ter tido filhos ainda. Brincou com eles, riu, se apaixonou e foi apaixonante, não teve problemas em ajudar a mãe a mandá-los para cama.
 
Na despedida lhe roubou um beijo cedido com muito carinho por Irene.
 
Sentiram que não tinham mais como voltar, a não ser no dia seguinte, e no outro e no outro e nos outros... e ficarem assim, juntos e apaixonados por quarenta anos.
 
Os filhos de Irene, agora de Bento também, lhes deram netos e formaram uma família grande e unida.
 
Bento e Irene faziam tudo que tinham direito em nome do tempo em que ficaram separados.
 
Tudo parecia ir bem, mas a memória de Irene começou a se ausentar. No começo só um pouco, uma vez ou outra, e depois a cada vez que saía do eixo demorava a voltar.
 
Bento conversava muito com ela quando sua memória estava presente e faziam daqueles momentos os mais intensos possíveis.
 
Agora, raramente Irene voltava. Ele continuava passeando com ela todos os dias e repetia incansável todo tempo presente, mesmo quando tinha certeza que não era entendido.
 
— Você é quem mesmo? – Sou seu amor, minha querida. Seu amor de uma vida inteira e serei além do fim. – Dizia ele.
 
— Lembrei! Você é o rapaz magrinho da foto.
 
— Sou, sim, querida. Mas vou melhorar se você quiser.
 
— Quero sim!
 
A família enchia Irene de carinho e atenção.
 
Em um de seus momentos curtos e raros de lembranças que voltavam à sua memória Irene abraçou Bento com muita ternura e lhe fez uma pergunta:
 
— Bento, por que você diz que tenho olhos de água?
 
— Pela cor e saciedade que eles sempre me deram, mesmo quando eu não sabia.
 
— Bento...
 
— Sim, querida?
 
— Não vá embora outra vez. Fique sempre comigo.
 
— Fico meu amor e se você for eu vou te encontrar como encontrei dessa vez; você lembra?
 
Não, já não lembrava, porque tinha viajado novamente e desta vez não voltou mais.
 
Bento, engolindo a dor, agradeceu por ter podido viver o seu grande amor, e o sonho de um dia encontrar Irene mais uma vez, o consolou.
 
O tempo pode passar, mas o sonho... ah, o sonho... esse é infinito e nada pode separar um grande amor.
 

 

Paixao.com

    “ Conheci um amor virtual, amor tão lindo quanto o real, sempre mando recados e depoimentos, mesmo distante tocou meus sentimentos.” ...